Milagre de domingo
Primeiros passos do domingo, uma e trinta da madrugada. No céu, duas estrelas conversam. Nada que não se possa ouvir. Quando se deram pela minha presença, indagaram:
- Por que nos espia, tolo? Já não mais existimos, tudo o que vês é a luz do que fomos.
- A essa hora, o sol ainda não brilha – retruco, pensando que talvez seja melhor espiar outra coisa.
Dentro do armário entreaberto vejo a girafa de pano. Inerte, até o momento de me surpreender, dizendo:
- Posso me mover, veja – exclamou ela saindo do armário – posso andar pela sala e, tal como fizeste há pouco, conversar com as estrelas. Ei, estrelas, um dia me tornarei uma girafa de verdade?
- Vá atrás... – retrucou uma delas, com desdém – para que isso aconteça terás de reunir três qualidades. Terás de puxar a vida para si, com toda a força que tiveres, então será a hora de dialogar com ela, com toda honestidade que conseguires, e por fim devolver tudo, tudo o que julgar que conquistastes.
- Dia após dia – emendou a outra estrela, taciturna.
A girafa ficou boquiaberta, dependurada na janela. Então indagou, olhando para o infinito do céu:
- E o que vem depois?
- Restará o brilho do que fostes – disse a segunda estrela - e isto permanecerá nos que contigo conviveram.
A girafa pensou, pensou, e nada disse. Daí encolheu os ombros bocejando, voltou para o armário e dormiu.
As estrelas assoviaram.
Quase duas da manhã. Elas tagarelam, fingindo que não se espantam porque insisto em espiá-las.
A lua espreita, em dado instante comentando que está em fase de crescimento, que em noites assim precisa reunir suas forças, e que salvo esse pequeno aparte, continuará observando, sem se importar que outros a contemplem.
- Tenho minhas convicções – finalizou ela. Nesse instante me intrometi, pedindo que falasse com mais vagar, pois devido ao horário digito sem precisão.
Uma brisa muito tênue entra pela janela. O silêncio que percebo parece agora um erro de tradução. Dentro em breve a luz do cenário mudará paulatinamente.
Três e tanto da madrugada e outras estrelas ocupam o lugar das anteriores. Cochicham.
A girafa desperta, salta do armário e volta à janela. Vejo seu olhar adocicado querendo de volta as explicações. Nada. Suas conselheiras se retiraram e as novas ocupantes do local não lhe dão atenção.
Desalentada, vira-se para mim e indaga:
- Se um dia tiver vida, e me tornar uma girafa de verdade, terei de ter tanta força, tanta sinceridade, e depois, devolver tudo o que ganhei?
Meneei a cabeça num sinal de temeroso assentimento.
- Não sei se terei talento para tanto – choramingou ela – afinal, fui só um boneco de pano, um brinquedo de uma criança...
- Mas você deixou lembranças – falei.
- Como... a luz da estrelas? - e sem esperar resposta, voltou para o armário.
De qualquer forma, eu também não saberia o que responder.
(Imagem: Edward Hopper. Menino e Lua, 1906-1907)
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