Estamos todos bem. Vamos indo, aos pouquinhos, “nada de mal nos alcança”. Ontem, na esquina próxima, um homem foi partido ao meio pelo ônibus. Conosco não. Fatos dessa natureza, Deus nos livre, acontecem com os outros. Nós somos os outros do lado de cá. Por isso estamos bem. Não acertamos na quina e nem almejamos o Nobel. Andamos na linha do meio entre a sanidade e a insanidade. Respeitamos a linha. Fazemos alguma caridade. Não sabemos de tudo, e tampouco a isso aspiramos. Praias no inverno, montanhas no verão. Andamos no contra fluxo. Executamos nossas tarefas de relativos superlativos sem soberba ou desdém. Dormimos em casas modestas, a luz do sol e a gota da chuva surgem com igual mesura. Estamos todos bem. Nossos bens, ou geram pouca discórdia, ou bem os administramos, à salvo da discórdia. Falamo-nos em ocasiões. Algumas preocupações nos tiram o sono, mas não todas as noites. Nossas manhãs são sempre manhãs. Pela TV, conferimos que outros padecem no miúdo da matéria, da falta de compreensão, da escassa proteção. Isso não nos escapa e de forma alguma é tratado com indiferença. É que não agimos em grande escala, por já conhecermos a extensão do nosso braço. Estamos todos bem, apesar de um mal estar ocasional, de passageiros destemperos, de descuidos reversíveis em alguns detalhes. Estamos bem, respeitamos a linha entre os pólos. Por não sermos o elo de ligação, nos tornamos o posto de observação. Com algum esforço, urge manter essa corrente unida, do lado de cá. Nada nos impede de gargalhar, de comer pipoca, de passear em ruas calmas e arborizadas. Nada consegue nos tirar o ímpeto de saudarmos entes queridos como se estivessem aqui, de imaginar como seria, ou como poderia ter sido. Inexiste um motivo especifico, no qual poderíamos nos apoiar, a fim de saber qual mistério nos protege, deixando-nos todos bem. Devemos colocar a luz em cima, para que ilumine. Devemos nos alimentar, nos momentos de fome, e descansar, nos momentos de fadiga. Estamos todos bem, porque é assim que devemos estar. Estamos todos bem, porque é nosso dever, porque alguém tem de estar, para que os outros vejam ser possível um caminho entre a agonia da treva e o esplendor doentio, um caminho que apalpa frutas na barraca, que folheia páginas amareladas, e que não vê desconforto no silêncio. Estamos todos bem, não há mal algum em repetir isso. Nossos problemas não são insolúveis, nossas decisões não acarretam o ônus da margem de tempo drástica, nossa compaixão de quando em quando se exercita. Talvez não sejamos os guardiões da tepidez, embora já tenha ficado claro que a sede das paixões saciou-se ao ser tocada pela brisa dos incólumes, tornamo-nos então imunes e arredios, e graças a tal postura, emanamos para o inconsciente dos desventurados a certeza de que em meio ao caos, alguém está bem. Sim, estamos todos bem, seria um verdadeiro crime algum de nós atentar contra isso, nossas queixas podem existir, mas não podem sobrepujar a aliança que nos mantém à salvo, sem um arranhão, devido a certa quantia de preguiça, de cautela, talvez, de um mínimo de sensatez. Mas não será agora, justamente agora, a hora de abandonar esse barco, esse bloco, ou esse ventre, e dizer o contrário, pois não seria verdade. Porque definitivamente, estamos todos bem. Conosco não. Com os outros. Infelizmente acontece com os outros. Em outras partes. Em qualquer parte, menos no nosso território. Estamos em guarda. Mas deixaremos a porta aberta, caso você ache ser o momento de viver essa experiência. A de estar bem sem motivo algum, e por motivo algum deixar de estar.
(Imagem: Egon Schiele, 1890-1918)
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