
Mesmo sob o risco de estar enganado, acho que em algum tempo houve mais de um debate acalorado colocando em cheque o caráter artístico da obra cinematográfica. Me parece meio medieval essa dúvida.
Não bastasse isso e as discussões dementes sobre gêneros e raças nos folhetins, fica flagrante a falta de determinado ingrediente nas expressões artísticas em geral.
Ano passado um amigo meu me mostrou o CD gravado pelo filho nos States. Quarteto instrumental vigoroso, 5 faixas, em instante algum passa pela cabeça do ouvinte qualquer réstia que questione a competência dos músicos cuja a idade é de 21 anos, estudantes em universidade americana, o filho desse amigo inclusive foi para lá com a benção de um dos papas da música instrumental brasileira. Trabalho fino, porém se faz flagrante a ausência do determinado ingrediente.
Stanley = Robert De Niro.
Iris = Jane Fonda.
Baseado na obra "Union Street” da britânica Pat Barker, esse é o último filme de um diretor que fez história, Martin Ritt, cujo passamento se deu em 1990, ano do lançamento de "Stanley & Iris”.
Martin Ritt , novaiorquino de 1914, lutou na Segunda Guerra, foi pra TV, deu aulas no Actors Studio (professor de Paul Newman e Joanne Woodward), rodou seu primeiro trabalho em 1957, atingiu o globo em 1979 com “Norma Rae” (Oscar e Cannes) e decidiu dar um descanso na sua batuta com a presente obra, que contém determinado ingrediente.
Stanley = analfabeto crônico, não consegue ler placas de ruas e destinos de ônibus, pé de boi para trabalhar, cuida do pai idoso, cozinha, sua auto estima beira 0,2, taciturno, quieto, não raro mal humorado.
Iris = viúva recente, depauperada, trabalhadora num panifício, casal de filhos pré adolescentes, por hora abriga a irmã e o cunhado que às vezes toma umas e dá uns coices, não é uma situação crônica e portanto dramática, a autoria coloca uma pincelada e assim possibilidade de.
Inteligente a maneira como a narrativa apresenta, em etapas, a incapacidade de leitura de Stanley. Eles se encontram logo no início do filme, Iris foi assaltada por um pé de chinelo, era a grana da semana, De Niro não conseguiu impedir, começa a amizade, vão se esbarrar na sapataria e ele se esquiva de ver o canhoto para retirar os sapatos, vão dividir um prato rápido e de sobremesa vem o biscoito da sorte, ele se recusa a ler a mensagem dizendo-se arredio a superstições, na terceira situação Fonda percebe que por baixo daquela casca ríspida respira o apedeuta.
Durante 104 minutos o espectador assistirá o uso de signos que, por comparação, causam aguda estranheza. A paciência, hoje conhecida como paz em ação, faz sua parte na costura já que sem ela seria impossível para Iris ajudar o arredio Stanley na sua alfabetização.
O ator Feodor Chaliapin Jr. nasceu na Rússia em 1905, fez uma porção de pequenos papéis de 1928 até 1992, aqui ele encena Leonides, pai do protagonista, teve a criança já na casa dos 50, da mãe não há menção, viajava pela América vendendo faqueiros com o filho a tira colo, cada semana num estado, o garoto quando muito dormia nas escolas, não aprendeu o abecedário.
Dessas coisas passíveis de se acontecer em 1990 ou antes, as desventuras (leia-se falta de dinheiro) obrigam Leonides a migrar para um asilo, De Niro o visita pontualmente todos os domingos, conversam, jogam damas, a figura do ator Feodor Chaliapin Jr. fala pouquíssimo, sorri no default “triste” e constrói impecavelmente o personagem, que na vida real contava com 85 anos. Dado domingo o filho encontra a cama vazia. A gerência se desculpa como pode, tentou avisar sem sucesso, Stanley havia se mudado para uma garagem, tempos sem celular e web. O instantâneo da vida corria de outro jeito.
“Conrack", “The Front", "The Long Hot Summer”, "Norma Rae”, quatro trabalhos variados e talvez emblemáticos do diretor que em hipótese alguma descarta a condição humana e o meio que a cerca, no caso a heterogeneidade da América, com sua variedade de defeitos e qualidades e seu mastro principal, o da terra da oportunidade.
"Stanley & Iris” não é um filme triste e tampouco seus protagonistas rodopiam em autopiedade e lamúrias, muito menos usam capas e possuem super poderes. O truque da prosa repousa na cadência.
O amor expresso pelo casal que só se consumará como um casal no fim do filme é sóbrio, firme, calcado de ponta a ponta numa atmosfera que tem muitas faces, (parte delas ilusória) e atende pelo nome de amizade. Quando real, nada a derruba.
Eles se veem e deixam de se ver a intervalos, também a intervalos se procuram, Stanley tem um ás na manga, mesmo inculto sua mente engenhosa o auxilia no campo dos inventos, possível tíquete de saída para uma vida melhor, a filha adolescente de Iris engravida, e entre os movimentos de fluxo e refluxo ele trilha a escada do alfabeto na casa da amiga.
Se os pilares de uma obra cinematográfica estão na composição das imagens e no manejo do roteiro, se este é calcado em diegese e diálogos, "Stanley & Iris” não pulsa em píncaro nenhum, inexiste um único deslumbre na obra, um Ohh, ou mesmo uma atuação aguda de dramaturgia onde se convencionou ovacionar o personagem quando “revela" sua alma lançando fogo às vestes e gritando, gemendo e se contorcendo.
Das academias em geral o filme não ganhou nem um tapinha nas costas. A crítica torceu o nariz. Comercialmente ficou no vermelho.
Em 1990 Jane Fonda e Robert De Niro estavam com suas carreiras consolidadas e em momento algum, a meu ver, negaram fogo na confecção desse trabalho. Muito pelo contrário.
Quem está pelo planeta hoje e esteve ontem, sorvendo e vendo a mutação do caldo cultural onde tudo parece antes de mais nada exacerbado, Batman era um boiola de collant nos anos 60, virou um brutamontes abismal , tudo também se banalizou deveras, Isaac Hayes suou para soltar o épico "Theme from Shaft” em 1971, hoje (há quase uma década…) virou campainha de telefone celular, a mente dá voltas no turbilhão de ofertas, e isso, veja, são micro exemplos numa vastidão ilimitada e tresloucada.
O ingrediente presente em "Stanley & Iris” e ausente em muita arte por aí atende pelo nome de doçura. É curioso, uma partícula subjetiva que não dá as caras onde se supõe, enquanto, a exemplo, na “batatinha quando nasce”, ou “na florzinha do vasinho”, longe disso, é uma fragrância que transita alheia aos olhos de quem vê e ou aos ouvidos de quem ouve, porém reconhecível quando presente, sabidamente rara, fora dos calendários, marcante nos momentos em que se faz notar.
Bernard, que resenha perfeita! Meus parabéns! Vou ter que assistir Stanley & Iris (só não sei se conseguirei encontrar). Esse ingrediente que você destacou. a doçura, está tão ausente como outras duas que prezo muito: a delicadeza e a gentileza. Abraço!